Maria acordou às 6h, como de costume. Primeiro esfregou as mãos nos olhos, embaçados pelo astigmatismo que a acompanha desde adolescente, depois levantou-se silenciosamente da cama, para não despertar o marido, que ainda dormia. Foi até à cozinha preparar o café para ele e para as crianças, que em breve estariam de pé para saírem de casa. Eram três filhos. Dois já homens feitos. O caçula, de 11 anos, nascera com certo atraso mental, e estava agora na 2ª série do primário. Esse foi o primeiro a acordar e ir até a cozinha, abraçar a mãe, Maria, que preparava a sopa de arroz que serviria no café. Os tempos já foram melhores, houve uma época em que Maria podia servir pão com manteiga e Nescau para as crianças. Mas isso fora antes de seu marido ser despedido daquela empresa que foi comprada por uma gente branca e esquisita, que vinha lá das bandas da Europa. Disseram que a mão-de-obra deveria ser mais qualificada e, ao invés de ensinarem os funcionários a fazer as coisas do jeito que eles queriam, preferiram trazer mais funcionários brancos e esquisitos daquelas bandas da Europa. Oh sim, os tempos já foram melhores. E agora lembrava-se disso enquanto o caçula a abraçava, com o carinho que só os filhos caçulas têm. Em seguida os outros homens da casa acordaram, lavaram-se, vestiram-se e comeram a sopa de arroz que Maria servira. Um beijo no rosto de cada um e lá estava ela, sozinha com o caçula. O relógio já marcava 7 horas da manhã e, se não se apressasse, chegaria atrasada à escola. Vestiu-se apressadamente e desceu a rua, em direção ao Hospital São Pedro. Quando chegou na parada de ônibus lamentou-se por não ter trazido a sombrinha; começara a chuviscar, fraquinho, mas daquelas chuvas de molhar bobo. Como não era boba, Maria tratou de ficar, juntamente com o caçula, debaixo da proteção construída especialmente para a parada de ônibus. Bonita e suntuosa, a cobertura lembrava-lhe os tempos melhores que não mais vivia. Os estilhaços de vidro, provavelmente resultantes da ação de jovens embriagados sem nada melhor pra fazer, obrigavam-na a ficar de olho no caçula, para que este não brincasse descuidosamente com nenhum dos cacos.
O ônibus veio lotado, como de costume. Maria entrou, com o caçula na frente, e apertou-se entre as pessoas. Uma gentil senhora, percebendo a deficiência da criança, cedeu seu lugar, gesto que foi instantaneamente retribuído com um sorriso doce e sincero de Maria. Ela sentou-se, com o caçula no colo, e começou a pensar nas coisas que deveria fazer durante o dia. Primeiro deveria deixar o caçula na escola. Iria abraçá-lo forte, como de costume. Ele lhe daria beijos molhados no rosto e ela agradeceria a Deus pela dádiva de um filho tão carinhoso, embora tivesse aquele atraso mental que, no fundo, para ela não fazia a menor diferença. Pelo contrário, talvez em função disso amasse ainda mais seu filho. Iria vê-lo correr em direção à sala de aula, cumprimentar os coleguinhas e dar aquela última olhada para trás. Tchau mamãe! – ele gritaria da porta da sala. Depois disso deveria voltar pra casa, terminar de costurar as roupas de Dona Joice, lavar os uniformes de futebol dos meninos e camisas xadrez do marido, levar as roupas até a casa de Dona Joice, receber o dinheiro pelo serviço e, talvez comprar um frango no armazém do Alemão. Pensava já no jantar, pois era dia de São Judas Tadeu e achou por bem designar um pouco do seu ganho para comemorar com a família, pedir por tempos melhores que não mais viviam e agradecer por ainda estarem vivos e com saúde. Enquanto pensava em tudo isso, esperava o ônibus para retornar ao Partenon. O ônibus veio vazio e ela sentou-se em um dos primeiros bancos. Acomodou-se bem e olhou pela janela, observando os carros que passavam, a chuva que caía timidamente...deu um suspiro e fechou os olhos, pensando em descansar um pouco, pois acordara bastante cedo. Eram 9h30 quando fechou os olhos. Deu mais um suspiro e deixou o queixo pousar suave sobre o ombro, a cabeça encostada no vidro da janela.
Foi seu último suspiro. Não haveria mais porque se preocupar com os tempos melhores porque não mais viveria para testemunhar as dificuldades que os tempos atuais traziam, junto com a chuva que continuava a derramar timidamente sobre os carros que passavam. Morreu ali, sentada no primeiro banco de um ônibus vazio, em direção ao Partenon, olhando pela janela como sempre fazia. Vendo a vida passar. A vida que não mais lhe pertencia.
Mas pertencia a mim, que vi Maria morrer, de dentro de um dos carros que passavam pela rua, enquanto a chuva caía.
Trilha Sonora: Crosby, Stills, Nash & Young – Déja-vu.
4 comentários:
bah, me surpreendi com o teu texto.
parabéns paul.
tá quase um daniel galera. :S
serim: achei muito legal mesmo.
Te redimiu mesmo...
Lindo texto!
tuas incursões como CINEASTER tão aprimorando a tua ótica.
Gostei demais do texto.
Sensível, retrato interessante e bem feito de uma vida. Beijos.
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